2008-11-03

A Maior Fraude da História – parte 2 de 6

Cultura: veículo ideológico

Cultura: o novo veículo ideológico do neoliberalismo


Márcia Denser*


Para o Iluminismo no século XVIII, a palavra «cultura» é sinônimo de «civilização». Inferimos, então, que cultura é o padrão que mede o grau civilizatório de uma sociedade. Ou seja, um conjunto de práticas – artes, ciências, técnicas, ofícios – através das quais se pode avaliar e hierarquizar os regimes políticos segundo um critério evolutivo.

Já no século XX, com a filosofia alemã, o conceito passa por uma transformação decisiva quando «cultura» se torna a diferença entre «natureza» e «história».

Cultura é, portanto, ruptura com a natureza. A ordem natural é regida pelas leis da causalidade e diz respeito à sobrevivência, à chamada Primeira Realidade (Bystrina), mas a ordem humana é ditada pelo universo simbólico ou semiosfera ou Segunda Realidade, e significa a capacidade humana de relacionar-se com o «ausente» e o «possível» através da linguagem e do trabalho. A dimensão humana da cultura é um movimento de transcendência para ultrapassar o tempo da existência (a morte) e o espaço (o ausente).

Assim, Cultura enquanto Segunda Realidade inaugura e consubstancia a História. A partir daí o conceito ganha uma extraordinária abrangência, pois a cultura passa a ser entendida como produção e criação de linguagem, religião, sexualidade, instrumentos e formas de trabalho, habitação, vestuário, culinária, música, dança, relações sociais, etc, enfim toda produção material humana ao longo do tempo.

A cultura é o campo onde a sociedade elabora símbolos, institui práticas e valores, define o possível e o impossível, o sentido da linha do tempo (presente, passado e futuro), as diferenças no interior do espaço (sentido de próximo e distante, grande e pequeno, visível e invisível), valores como falso e verdadeiro, belo e feio, justo e injusto, instaura a lei, logo permitido e proibido, determina o sentido da vida e da morte, e então sagrado e profano.

Contudo, a marca da sociedade é a existência da divisão social, da divisão de classes, e esta institui a divisão cultural, donde a idéia de «cultura dominante» e «cultura dominada». Graças às análises da ideologia, o lugar da «cultura dominante» é bastante claro: é dali que se legitima o exercício da exploração econômica, da dominação política e da exclusão social. Mas essa dominação tende a ser ocultada, e é nesse sentido que opera a cultura de massa, pois:

a. Separa os bens culturais pelo valor de mercado: obras caras são consumidas pela elite e as baratas e bregas pela massa. Institui-se a divisão entre elite «culta» e massa «inculta»;

b. Inventa a figura do «espectador médio», isto é, aquele que tem capacidades mentais médias, gostos médios, conhecimentos médios e a quem ela oferece produtos culturais médios. Que significa isso? A indústria cultural vende cultura. E para vender tem que seduzir o consumidor, NÃO pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, dar-lhe informações novas, mas SIM devolver-lhe, com novo modelito, tudo o que ele JÁ SABE, JÁ VIU, JÁ FEZ. A «média» é o senso comum petrificado que a cultura de massa devolve com cara de coisa nova.

c. Define cultura como lazer e entretenimento. Hanna Arendt apontou a transmutação da cultura sob os imperativos da comunicação de massa, isto é, a transformação do trabalho da cultura, das obras do pensamento e da arte, dos atos cívicos, esportivos e religiosos em entretenimento.

Do ponto de vista do processo criativo cultura é trabalho (e trabalho duro!), algo muito distante de repouso e lazer. E massificar é o contrário de democratizar a cultura, é a negação da democratização da cultura.

O fato é que ocorreram profundas transformações na experiência do espaço e do tempo, decorrentes das novas tecnologias. A fragmentação e a globalização da produção econômica engendraram dois fenômenos contrários e simultâneos: a dispersão temporal e a compressão do espaço. Tudo se passa aqui, sem distâncias, nem fronteiras, e tudo se passa agora, sem passado nem futuro.

Fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado, plano, de imagens fugazes, e um tempo efêmero, desprovido de profundidade.

A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instantâneo, assim como a profundidade de campo, que define o espaço da percepção, desaparece sob o poder do lugar nenhum tecnológico. A telepresença e a teleobservação impossibilitam diferenciar entre aparência e sentido, virtual e real.

Ao perdermos a diferenciação temporal, cessa a profundidade do passado, bem como a profundidade do futuro como possibilidade para ultrapassar situações dadas, compreendê-las e transformar seu sentido – eis o que se convencionou chamar de «condição pós-moderna» (Lyotard), quer dizer, a existência social e cultural sob a economia neoliberal.

Assim perdemos o sentido da cultura como ação histórica. Como funciona? Bom, algumas respostas dadas por estudantes em vestibulares de Música demonstram isso bem concretamente:
  • Mozart morreu jovem. Sua maior obra é a trilha do filme «Amadeus».
  • Os maiores compositores do Romantismo são Chopin, Schubert e Tchaikovsky. No Brasil temos Roberto Carlos e Daniel.
  • Muitos pesquisadores concordam que a Música Medieval foi escrita no passado.
  • Bach está morto desde 1750 até os dias de hoje.
  • Beethoven escreveu música mesmo surdo. Ficou surdo porque fez música muito alta. Faliu em 1827 e mais tarde morreu por causa disso.
  • Joseph van Damme além da arte lírica, é adepto das artes marciais. Não assisti nenhuma ópera mas tenho o DVD de três filmes dele. (porrada nele, Jean-Claude!)
  • Os menestréis e trovadores transmitiam notícias e estavam nas festas. Andavam de cidade em cidade, de castelo em castelo e iam até nos shows de TV.
  • Handel era meio alemão, meio italiano e meio inglês.
  • Henry Purcell é um compositor muito conhecido, mas até hoje ninguém ouviu falar dele.
  • Eu sei o que é sexteto, mas não sei dizer.


É isso aí. Uma cultura dominante, cuja exploração econômica, dominação política e exclusão social é aceita cotidianamente sem perguntas, se realiza plenamente tornando a todos – sobretudo os mais jovens – despolitizados, acríticos e burros. E gostando disso. Enjoy it.
Márcia Denser

* A escritora Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.