2009-04-03

Menos, please!

Olhos Azuis
Os jornais «repercutiram» em doses cavalares um trecho da fala de Lula em entrevista ao lado do Primeiro-Ministro Brown, o que dizia que esta crise econômica foi provocada por gente branca de olhos azuis. Diversos comentaristas foram tão literais que chegaram a objetar, para mostrar a inadequação de Lula, que os olhos de Brown não são azuis, vejam só, assim como não devem ser os de todos os dirigentes que ajudaram na bandalheira.

Não faltou quem dissesse que a declaração de Lula foi racista. Ora, para que fosse, a declaração deveria ter explicitado ou insinuado uma relação de causa e efeito ou de condição e consequência entre ser branco de olhos azuis e gerir bancos e outros empreendimentos do jeito que esses caras o fizeram.

Mas seu discurso sequer deu a entender que fraudadores são fraudadores porque são brancos e têm olhos azuis. O discurso racista relativo a negros, judeus e ciganos, para ficar nos exemplos universais mais óbvios, só é racista porque diz que eles fazem o que fazem e deixam de fazer o que deixam de fazer – segundo a reles avaliação dos brancos de olhos azuis ou nem tanto – porque são negros e porque são judeus e porque são ciganos. Até avaliações positivas em certos espaços podem eventualmente ecoar racismo. Tenho minhas dúvidas sobre como avaliar os discursos que dizem que os negros são melhores em música e esporte e mesmo os orientais em matemática.

Do mesmo modo, o machismo só é machismo se explicitar ou implicar que certas ações e direitos são o que são porque seus autores ou destinatários são do sexo / gênero masculino. Só se é machista defendendo que certas características «negativas» são típicas de mulher, que elas são assim (dirigem de certa maneira, demoram a se arrumar, nada entendem de futebol, para ficar em exemplos leves) porque são mulheres. Ninguém é antissionista se disser que Israel atacou Gaza assim ou assado. Só o seria se dissesse que certas ações condenáveis da guerra foram o que foram porque seus agentes eram judeus.

É até compreensível que se veja racismo onde ele não existe (em expressões como «período negro da história»). É que a parte branca da humanidade, de olhos azuis ou não, já falou tanto sobre tais pretensas relações de causa e efeito, que basta mencionar a questão para que o racismo histórico volte à memória – mesmo que seja só por associação.

Mas, convenhamos, não é o caso quando os alvos (sem trocadilho) são brancos, louros ou não, de olhos azuis ou verdes ou castanhos. Tem gente que pergunta por que não haveria racismo quando se diminui os brancos. É que o racismo histórico, como fato histórico, nunca esteve associado a eles. Eu, por exemplo, nunca poderia achar que foi racista o garçom negro de um bar de beira de piscina não importa onde que ria de minha brancura (e me chamava de branquelo e sugeria, rindo de mim, que eu me protegesse do sol). Racismo não é chuva para cair do céu de repente.

Além disso, convenhamos, «brancos de olhos azuis», considerado o amplo contexto em que a expressão foi proferida, refere-se «àqueles caras lá do norte, metidos a dar lições e a decidir quando podem conferir o tal grau de investimento», tenham os indivíduos a cor que tiverem, da pele e dos olhos. Além disso, muito claramente (tem gente que vai achar que esse claramente é racista!!), a expressão não se refere ao povão de lá, mas aos responsáveis pelas instituições financeiras ou empresas automobilísticas e quejandos. Obama, dependendo do que fizer, será um branco de olhos azuis, mesmo sendo negro.

Se houve erro, e pode ter havido, foi de etiqueta. Não entendo nada desse negócio (chamem a Glorinha Kalil), por isso nem comento. Apenas acrescento que não gosto muito de linguagem excessivamente descolorida (não digam que há racismo também aqui!), convencional demais, a não ser como corpus para uma análise.

Vários editoriais e colunas e reportagens bateram duro. Como era de esperar, não bateram nos loiros de olhos azuis, nem nos PhDs, mas apenas em morenos de pouca escolaridade. Seria mais fácil ver racismo (que não há!) na imputação de racismo a Lula do que em sua menção aos brancos do norte. Ver racismo nessa declaração é exemplo chapado de superinterpretação. Lula dá suficientes razões para críticas justas. Não é necessário inventar outras.

Mas, considerando outros fatos, fica bem claro (não faltará quem veja aqui outra recaída racista!!) a sociedade brasileira mostra todos os dias o quanto é vantajoso ser branco de olhos azuis. As segundas instâncias do Judiciário sempre se movem celeremente para fazer justiça – ou para aplicar a lei – quando brancos são presos.

Uma Daslu move a Justiça muito mais rapidamente do que cem Daspu.

Sírio Possenti*


*Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso e Questões para analistas de discurso.


Fonte: Terra Magazine